Assim caminha a humanidade
Outro dia faleceu a mãe do Magro, amigo meu de infância. Minha turma toda foi lá dar uma força para ele e, principalmente, para o pai dele, grande figura, que nos adorava. O velho ficou tão feliz em nos rever, que prometeu um churrasco para depois que a tristeza passasse.
O velório da mãe do Magro foi uma festa para a galera que não se encontrava havia décadas. Ficamos relembrando os bailinhos que a gente ia para beber e paquerar. A aposta era sempre a mesma: quem seria o mais esperto que conquistaria a filha de algum ricaço para se casar. Ninguém conseguiu dar o velho golpe do baú [uns ainda estão casados (e felizes) até hoje].
Pouco mais de um mês, o Magro chama a turma para uma picanha na chácara do pai.
Espanto geral. O coroa nos recebe de mãos dadas com uma loirosa, idade indecifrável. Rosto esticado, maquiado, brincos deste tamanho, colares e pulseiras em profusão, vestido curto estampado, seios rijos à mostra, pernas roliças, joelhos em dia, sandálias prateadas de salto triplo, esmalte vermelho nas mãos e nos pés. Perfume francês? Perua!
— Vamos nos casar, pessoal, anunciou o viúvo, feliz da vida.
Fomos logo encher o saco do Magro, com aquele papinho de sempre: tá bem de madrasta, hein, companheiro, isso daí ainda dá um belo caldo depois do quinto uísque, pra mim, essa véia tá de olho na grana do véio…
— Essa véia tá no quinto casamento, revela o futuro enteado.
Vou para o salão de jogos fumar, dar uma geral no jornal espalhado pelo sofá. A perua aproxima-se, pede para acender o cigarro dela, joga charme.
— Incomodo?
— Magina…
— Posso ver uma parte do noticiário?
— Lógico. Qual caderno a senhora quer?
— Pode me chamar de você.
— Variedades? Horóscopo?
— Obituário.
— ???
Passo o caderno. A perua dobra o jornal com destreza na página e na coluna certa. Lê atentamente, tudo.
— Desculpa a curiosidade, por que a senho…, você quis ver o obituário? Algum parente?
— Vira essa boca pra lá, meu bem!
Toca o celular da perua. Ela fala baixo. Sim, diariamente, minha querida, depois eu te retorno, agora não dá, outro grande.
Continua atenta ao jornal. Olha para os lados, disfarça. Separa a página do obituário, dobra-a de qualquer jeito e a coloca na bolsa imensa de tecido que combina com uma das cores do seu vestido curto. Fico na minha.
Depois do almoço, a perua me vê de longe e faz sinal com a cabeça, levantando as sobrancelhas marcadas com lápis, para eu ir para o jardim.
— Vi que você notou que eu roubei a folha do jornal, meu bem.
A perua me pega delicadamente pelo cotovelo e me arrasta para atrás de uns arbustos, sob os olhares atentos e maliciosos do meu bando.
— Vou te contar um segredinho, só porque fui com a sua cara: tenho uma turma de amigas, amigas de juventude, sabe como, do século passado, que nos encontramos até hoje, a maioria, ou melhor, todas ex-viúvas, com exceção de uma, que perdeu o marido na semana passada e ainda anda tristinha. Ex-viúvas! Tá me entendendo?
– Não sei onde a senho…, você quer chegar.
— Nós lemos os obituários dos jornais todos os dias, mais especificamente as missas de sétimo e de trinta dias. Anotamos os nomes dos viúvos, damos um Google, estudamos o potencial de cada um. Tá me entendendo, meu bem?
— Quer dizer que…
— …isso mesmo. Conforme as possibilidades do viúvo, aparecemos nas missas, damos os pêsames, um conforto, um sorriso, trocamos umas palavras…
— …nunca podia imaginar que…
— …que o Google fosse fazer a alegria das viúvas, não é, meu bem? O Google e esses remédios aí que inventaram para os homens.
— Quer dizer que a senhora e o pai do meu amigo…
— …foi no sorteio, te juro pra você! Nossa turma se respeita. Temos regras. Somos organizadas. Desta vez, fui a contemplada. Estou aqui.
Saio dali desolado. Vem um amigo de juventude, completamente.
— Vai catar a madrasta do Magro agora ou quer que embrulhe?
— Nada disso, meu chapa! Só uma coisinha: nossa turma é pinto perto das colegas dessa daí.